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Duelo com Satã

Quando a areia repousa no fundo do lago, cria-se a falsa sensação de que as coisas estão em paz. Nos seus devidos lugares. A questão é que a areia e a água do lago não são permanentes. A areia precisa de algo, de uma força que lhe é externa, ainda que dentro do lago, para lhe tirar do lugar. O lago, a seu turno, acomoda ou incomoda um ecossistema que lhe é natural, mas não é permanente. Sofre as ameaças dentro da sua concha e fora ela. O que importa, em um final que nunca termina, é que nada fica do mesmo jeito que sempre foi, ou que sempre é. O que vai em nossa alma também é assim. O documentário "Alma imoral", baseado no livro de Nilton Bonder, trata sobre essa impermanência. Essa oscilação que se move graças a tudo que transgride as regras. Ou tudo que transcende-as. Dá no mesmo, no final. Transgredir é transcender. A segunda pode parecer mais "católica", sim, é. Arrematada pela filosofia medieval, que se apropriou do Homem e de Deus. Em ambos os caminhos, revo
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Quarentena da varanda

Virgínia tinha 47 anos e observava a paisagem da varanda de seu apartamento. Fazia isso já há quase 40 dias. Estava em quarentena. Ela e um terço da população do planeta. Um vírus novo, altamente contagioso e letal colocou todos em casa. Ou pelo menos os que quiseram e puderam ficar. Ela tinha 47 e olhava a paisagem da varanda... Uma vida parada ou pulsante ? Engraçado ela comungar dos dois pontos de vista. A cidade estava aparentemente parada. Ouvia e via um carro aqui, outro ali cortar a avenida. Mas as pessoas estavam pulsantes. Cada uma com seus anjos e demônios internos e externos para lidar. Quarentena sozinho, quarentena com a família... Um desafio diário. Imagem: Joseph Redfield Nino / Pixabay Virgínia refletia sobre aquele desafio na vida dela. Não o tempo todo. Procurava dividir a rotina para ter uma rotina. Uma que fizesse sentido. Um novo pra o novo tempo. E um novo para um tempo mais novo ainda que estava por vir. Mas, entre os pensamentos, foi caçar algo na N

No ritmo do mar

Os pensamentos guardam em si a mesma intermitência das ondas do mar. Ora voltam à calmaria, ora revoltam-se contra as pedras, ora nos quebram só para começarmos tudo de novo... E ainda bem que o mar é assim.

O Sentires

Medo. Esse fiel inimigo. Bem-vindo certas vezes, mas inconveniente em dosagens homeopáticas. Solidão. Prisão sem muros. Porque não conhecida. Um dragão do mar na impermanência dos dias. Assombrando, retroalimentando-se da sombra que enxergamos. Alegria. Joia rara porque pouco procurada. Estado normal, mas cheio de desvios. Sol nascendo e se pondo. Noite alta. Folhas balançando. Aquele tacho no fogo e o pão com café que Adélia Prado tão bem definiu como sentimento. Amor. Luxo da alegria. A rotina gostosa. O tacho no fogo com água quente. O quebrar da rotina. Um café, olhando para uma praça. Carros passando. O sol, ele de novo, se pondo. Hora boa. Porque o entardecer traz amor. Traz a promessa de outro dia, que sempre vem... Esperança. Imortal. Infinita. Programar o despertador. Olhar para meses à frente. Anos a frente. Não anos a fio, mas o fio infinito que nos torna humanos. Tempo. Tempo. Tempo.

A hora perigosa?

Poucas coisas nos capturam tanto quanto o pôr e o nascer do sol. A hora do crepúsculo é-nos mais desafiante porque nos testa com suas metáforas. É preciso ter alma e olhos teimosos para vencer esse mal-estar cinzento da civilização. Porque a metáfora da hora crepuscular traz uma marca, traz um cheiro dominante de fim. Mas será que é em si dominante ou é nosso inconsciente que teima em assim revesti-lo? A perigosa hora, que tira Ana, de Clarice, da zona de conforto, pode bem ser a melhor hora. A hora boa. A melhor hora. A melhor hora... a melhor. A hora de deitar-se na varanda e contemplar a imagem da tarde esvaindo-se. Levando consigo a luz do dia, mas prometendo, em si, outra luz ao alvorecer. Mas a melhor hora sempre tem que ir, porque o alvorecer se aproxima. Pede passagem. O alvorecer sempre pede passagem... mas só pede. O alvorecer precisa de nossa permissão. Permissão para deixar a noite ir embora. Mas entre o alvorecer e a noite há o entardecer. Uma hora infinita. Difusa. Aberta

O riso

O riso é, sim, uma manifestação de alguém que está feliz. Mas é também desespero de alguém em aflição. Porque o riso tem essa característica de ser, em si, oposição. O riso é ainda um recurso de quem é pego de surpresa e, sem saber o que dizer, ri. Ri o riso dos fujões ou dos traídos pela falta de reação ao assalto de um argumento. O riso é, sim, autoritário. Impõe com uma cara engraçada uma inocente piada, que de nada disso tem. Tem pavor, rancor, preconceito. Mas o riso tudo abafa. E aparece, ali, sorrateiro e inconveniente.  Senhor de sua presença. O riso é, sim, falta de assunto. Provocação e até irritação. Testa os nervos de quem vê em tudo um opositor. Testa também os nervos daquele professor. Que suporta, ou não, os risinhos quando tira os olhos do grupo. O riso, em suas variantes e sob todas as suas relatividades, é imprevisível. É um enigma. Porque nem todo riso é sincero. E quando falta a verdade, sobra autorid

No velório de Aldemar, todo mundo tem o que falar

No velório de Aldemar, só a vela fica em silêncio... A casa de Aldemar estava cheia. Mas sempre vivia assim quando ele ainda respirava. Agora ele estava ali, naquele caixão com a portinha de vidro mostrando-lhe o rosto sereno. Talvez esse fosse o último dia em que aquela casa via muita gente. Aldemar era bem conhecido, não necessariamente querido, mas bem popular no sentido de ser uma pessoa do conhecimento de todos. Perto dali, ainda na sala, os cochichos: - Soube que ele tinha outra mulher e até teve um filho com ela. - E eles vêm para o enterro? - Não sei. Acho que a família oficial não iria querer, né? - Mas a esposa sabe? - Essas coisas... Acho que sempre sabe. No terraço, mais comentários: - Parece que ele devia a um agiota. Bronca grande! - É mesmo? E agora? Porque agiota nunca quer perder... - Acho que a família vai ter de pagar. - Mas eles sabem da dívida? - Não sei. Certamente a esposa sabe. Difícil não saber. Na frente da casa: - Dissera