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Mostrando postagens de agosto, 2010

CINCO SEGUNDOS

Tomar um copo d'água. Abrir a geladeira, olhar o que tem dentro e fechar sem pegar nada. Decidir se pega o feijão verde ou mulatinho no self service. Abrir o chuveiro para verificar se a água está quente. Uma olhada no espelho para ver se está tudo bem com o visual. Pentear as sobrancelhas de uma vez só, usando as duas mãos. Olhar para os lados da rua e ver se vem carro. Apertar o botão para o sinal fechar. Mudar o canal da TV duas vezes seguidas. Acertar o relógio dando uma volta no ponteiro dos minutos. Piscar o olho para alguém e sorrir em seguida. Abrir o flip do celular e fechar sem atender a algum chato que liga sempre. Começar a se apavorar caso a porta do elevador não abra e você fique parado no andar, sem subir nem descer. Fazer uma oração rápida, recitando automaticamente algum trechinho do pai-nosso. Decidir se entra ou não no metrô quando ele para na estação. Fazer polichinelo uma vez só. Só para dar uma saculejada no corpo. Parar de rir num enterro antes que os outros

EPITÁFIOS

"Você vive o hoje. Eu já estou no amanhã, que te espera" . Essa frase bem que poderia ser um epitáfio, aquelas mensagens escritas em cima das lápides dos túmulos, geralmente com tom de despedida, saudade, mas algumas também com ironia. E são interessantes. Quem nunca se pegou entretido em um cemitério lendo e pensando sobre os epitáfios escritos nos túmulos? São interessantes, não? Os epitáfios revelam muito mais do que mostram. Eles dizem também do modo de ser da pessoa que viveu aqui na Terra. A não ser que a família do defunto fizesse uma grande sacanagem de inscrever na lápide algo que não combinasse com o ente querido. Já imaginou um epitáfio como "Agora a terra vai me comer" na lápide de uma freira? Em linhas gerais, pode-se considerar um epitáfio como a última voz da pessoa antes de virar defunto, ou uma homenagem póstuma dos familiares àquela criatura. Muitos já deixam seus epitáfios prontos antes de morrer. Outros nunca pensaram nisso. Deixam a cargo da cr

O FINADO

Julieta se preparava com capricho. Comprou flores, se arrumou toda, perfumou-se, colocou o mesmo vestido vermelho decotado que usa todos os anos e foi para o cemitério. Ia visitar o túmulo de Ademar, seu falecido marido. Julieta enviuvara há dez anos. De lá para cá, não se casara de novo. Pretendentes apareceram, claro. Afinal, ela é uma mulher jovem ainda, 40 anos, bonita e bem cuidada. Tem uma boa pensão que Ademar lhe deixou e sabe gastá-la muito bem com vaidades. Mas preferia viver só. Julieta conheceu Ademar ainda adolescente. Tinha 16 anos. Primeiro namorado, primeiro marido. Namoraram, noivaram e casaram. Julieta casou-se virgem. Era a tradição da família. E dela também. Passaram três anos casados quando a morte levou Ademar. Ele foi atropelado por um caminhão. Na época, a polícia investigou e tudo, mas o motorista do caminhão não foi preso. Ficou provado que Ademar atravessara de repente, como se estivesse se jogando na frente do caminhão e não deu tempo do motorista frear. Ass

UMA TROCA

Romualdo estava sem jeito de dizer aquilo para Eulália. Já tinha ensaiado várias vezes, mas não conseguia encontrar uma forma amena. Pelo o que conhecia da esposa, não ia ter problema nenhum. Achava até que Eulália ia gostar. Mas, quando o assunto é cabeça de mulher, nunca se sabe o que vai se passar. Naquela noite, ele resolveu fazer a proposta para ela. Chegou do trabalho primeiro que a esposa. Tomou banho, esperou. Eulália chegou alegre: - Oi, amor! Você nem sabe a novidade!!!!! - disse, soltando a bolsa e se jogando no colo de Romualdo, que estava sentado no sofá. - É mesmo? E qual é? - Fui promovida! - falou ela, dando-lhe vários beijos no rosto. - Que bom, amor! Que notícia boa! - Foi só 10% a mais no salário, mas para mim está ótimo! Vou para um setor de que gosto muito! - Que maravilha! Olha, eu também tenho uma novidade.... - começou Romualdo, fazendo um ar de mistério. - É? Qual? - Lembra daquele dia que a gente tava discutindo a relação e você disse que queria fazer alguma c

O TÁXI

Todas as noites, de segunda a sexta-feira, o martírio de Zé se repetia. Perto da hora da esposa voltar do trabalho, Zé apagava todas as luzes, colocava a cadeira perto da janela e ficava a vigiar. Dalva chegava num táxi branco, vidros fumê e, antes de ir embora, ficava debruçada na porta do motorista conversando. Isso é o que matava Zé do coração. 'Por que aquela intimidade toda com o taxista?' . Quando Dalva ia entrando, Zé corria para a cama e fingia dormir. Isso já vinha acontecendo há alguns meses. Dalva sempre chegava à mesma hora, no mesmo táxi e fazia a mesma coisa: batia um papinho com o tal motorista. Na verdade, o que se passava na cabeça de Zé era justamente o que se passa na cabeça de alguém que está apaixonado e tem medo de enxergar uma verdade que machuque: ele não poderia acreditar que estivesse sendo traído. Esse era o único, digamos, indício de que poderia estar havendo alguma coisa errada. Dalva, apesar desse comportamento estranho com o taxista, chegava em ca

PROVA DE AMOR

Há quem precise de uma prova de amor para confiar no parceiro. Se soubessem a cova que estão cavando, abandonariam essa ideia. Mas o ser humano não consegue. A insegurança em relação ao outro é tão grande que essas pessoas sucumbem à razão. O curioso é que na maioria dos casos o parceiro não dá motivos para essa desconfiança. Um tempo razoável de relacionamento dá uma certa estabilidade, sim, mas ninguém garante o futuro. Não sabemos quem vamos encontrar e qual afinidade vamos ter com uma nova amizade. O fato é que a confiança no parceiro passa muito mais por uma confiança em si mesmo. E não é daquela do tipo "eu me garanto", não. Essa é a mais tola confiança que alguém poderia ter. Trata-se, antes de tudo, numa confiança tranquila em si mesmo, e num entendimento sublime de que ninguém é de ninguém e o que tiver de ser, será. Simples de entender, mas difícil de praticar. Não adianta brigar com o mundo, fechar-se para as pessoas porque sofreu uma decepção no amor. Tudo bem que

A CONFISSÃO

Fazia uma semana que Margarida se consumia num remorso sem tamanho. Estava decepcionada com ela mesma, não acreditava que tinha feito uma coisa tão sórdida como aquela. Quando começou a perceber a besteira que fez, ela correu logo para a igreja. Fazia anos não entrava em uma. De início, passou a ir à missa da manhã. Depois, só ia em casa almoçar, no intervalo dos cultos. Quando as rezas não estavam mais funcionando para aliviar o remorso, eis que ela resolveu se confessar. O padre, seu José, a recebeu com sua calma de sempre: - Pois não, minha filha, o que a traz aqui? O que lhe perturba? - Padre, eu pequei! - Todo filho de Deus peca, minha filha. O importante é o arrependimento. Qual foi o teu tropeço? - Traição, padre! Eu traí meu marido pela primeira vez depois de 15 anos de casada! - Minha filha! Por que fez tal ato? Não amas teu marido? - Amo, padre! Eu o amo muito! Mas não consegui resistir à tentação da carne e estou arrependida. Prefiro morrer! - Não diga isso, minha filha! Mes

ETERNA AMADA

Nunca uma visita foi tão esperada por Delmiro. A carta havia chegado duas semanas atrás. Sílvia, uma antiga namorada, escrevera dizendo que estava voltando de Portugal. Além de dar essa boa notícia, ela dava uma pista de que a história deles ainda teria o que render. Isso foi o que animou Delmiro, que estava há dois anos divorciado. De lá para cá, não tivera nada a sério com ninguém. As mulheres só queriam curtir e ele, à moda antiga, queria compromisso. Mas com Sílvia seria diferente, esperava ele. Há dez anos, quando namoravam, Sílvia era um doce. A mulher que queria para viver por toda a vida. Viveram uma relação boa. Tranquila e sem cobranças. O problema foi a sede dela em conhecer coisas novas. Primeiro foi um mestrado aqui mesmo, depois, um doutorado em Portugal. Foi para lá, onde permaneceu por dez anos. No começo, mandava cartas toda semana. Depois, esse intervalo foi aumentando para quinze dias, um mês, de vez em quando, só nos finais de ano e, ultimamente, não mandava mais. D

NA HORIZONTAL

Posição erótica. Na horizontal, todo mundo fica. Tudo é mais fácil e todos são iguais. Aquela mulher difícil, aquele homem misterioso, mas na horizontal caem as máscaras. As faces ficam face a face. O corpo fica no corpo a corpo. Embora essa nudez seja evidente, nem sempre os atores representam a si. Muitas vezes, na horizontal, querendo impressionar, são o que não são, mas gostariam de ser. Até quando sustentar isso na horizontal? Posição convergente. Na horizontal, tudo se acalma. Aquela briguinha com o parceiro, a desconfiança de que outro ou outra ameaça a nossa posição, o medo de não ter mais a posse, tudo isso se desfaz na horizontal. Tem muito a ver com o lado erótico, mas é no lado emocional o seu forte. E a horizontal é expert em resolver conflitos amorosos. Posição filosófica. Na horizontal, fechamos os olhos e nos entregamos a Morfeu, o deus dos sonhos da mitologia grega. Filho de hipnos, deus do sono. Mas, nem todo mundo se entrega a eles. Existem os parceiros da insônia qu

O NOVELO

Pedro é casado com Luíza, mas ama Tereza, que ama Amadeu, que sente tesão por Silvana, que pensa que ama Maria, mas é só carência de amor de mãe e na verdade ama o primo Alceu. Só que Maria, que conquistou o pseudo amor de Silvana, ama Natália, que é apaixonada desde criança pelo professor de literatura Ronaldo, que é casado com Dora, que é professora de inglês e dá aula a Luíza, aquela que é casada com Pedro. Apesar de amar Tereza, Pedro, aquele que é casado com Luíza, tem um romance secreto com Marlene, a dona do curso de inglês onde Dora trabalha. Só que Ronaldo, que é casado com Dora, ouviu-a comentar que a chefe dela tem um caso com um homem casado e partilhou essa informação com Alceu, aquele primo de Silvana pelo qual ela é apaixonada e não sabe. Deu a maior confusão porque Alceu contou isso na barbearia, mas Pedro, o que é casado com Luíza, também estava lá e ouviu tudo. Furioso, foi tirar satisfação com Marlene, a sua amante que é dona do curso de inglês onde Dora trabalha e