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O ESPELHO

O espelho estava ali há uma semana, desde a mudança. Ainda não tinha sido fixado na parede. Estava encostado na parede do corredor, que faz comunicação com o quarto de casal. Encostado e inclinado. 'Será que espelho empena se ficar muito tempo inclinado?', pensava Jorge. Infelizmente ele chegava à conclusão que iria ter todo o tempo do mundo para descobrir isso. Uma porque havia acabado de se mudar e não cogitaria ter toda aquela trabalheira em apenas uma semana de casa nova. E outra porque não tinha forças nem mentais, nem emocionais e nem físicas para pregar aquele espelho na parede. Aquele espelho e um bocado de coisas pra fazer. Coisas de mudança.

Todos os dias da rotina de Jorge eram os mesmos. Saía cedo para o trabalho. 'Ainda bem que tenho o trabalho para ir!', aliviava-se quando não mais suportava a solidão dentro daquele apartamento. O café da manhã era tomado numa cadeira de praia, em frente à TV, que por sua vez era apoiada em cima de dois caixas de som velhos. O som mesmo, quebrado, estava encostado no quarto da bagunça. Só o quarto do casal é que estava um pouco com cara de quarto. Julieta havia arrumado o local assim que a mudança chegou. Boa coisa fez ela. Senão, nem o quarto ia ter cara de que pertencia a uma casa.

A cozinha também quase não existia. Só um fogão velho, uma geladeira que faltava um pé e um armário que fora do antigo dono. Ali Jorge metia as poucas louças que tinha. Só pra tomar um café com pão mesmo. Tudo naquele apartamento tinha cara de abandono. A começar pela cara de Jorge. Barba por fazer, irregular, uma aparência de largado, taciturno. Melhorava um pouco a situação após o banho antes de ir para o trabalho. 'Ainda bem que tenho o trabalho!', pensava sempre.

Mas, sempre ao chegar do serviço, deparava-se com o vazio, com aquele apartamento bagunçado, com aquele espelho inclinado na parede, prestes a escorregar dela e quebrar.

Jorge ficava os dias de folga ali, a olhar para o espelho. Sua imagem refletia-se meio estranha no espelho, mais estranha do que sua imagem real: sentado, parecia que o seu tórax afastava-se do resto do corpo. Em pé, suas pernas pareciam querer ir embora. Assim como Julieta foi. Jamais Jorge esperaria que uma mudança fosse trazer tantas mudanças para sua vida. E para a de Julieta também. Recém-casados, ela partiu sem dar explicações. 'Maldito infarto fulminante!', praguejava ele, diante do espelho.

Comentários

  1. Putz... não esperei mesmo esse fim.
    Muito bom Leusa.
    Meu obrigada semanal pela dose de criatividade e boa escrita.
    Abraço!

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