Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de novembro, 2017

Drummond

Drummond vinha andando na rua meio desconfiado. Mãos nos bolsos. Voltava da escola. Mochila nas costas. O tio a observá-lo sentado no batente do terraço de casa. O tio implicava com ele. Na verdade, é um tio meio irmão, meio primo. Pouca diferença de idade. Drummond tem dez anos. O tio, 16. Dessas famílias que começam cedo a desligar a televisão! Ao chegar em casa, no batente do terraço, o tio já o importuna: - Que cara é essa, Dru? - A mesma de sempre. - Nada disso! Aprontasse algo, não foi? Tá estranho. - Estranho nada. - E essas mãos nos bolsos? O que tem aí? - Aqui... nada. - Tem sim alguma coisa! Tira pra eu ver. - Para! Tanto o tio fez e, na verdade, como tinha natural supremacia física, revistou o sobrinho, conseguindo tirar do seu bolso esquerdo um bilhete. - Ah! Achei o seu mistério! - Devolve isso! Não é seu! - E é de quem? O que você esconde? - Perguntou o tio, segurando o papel como se fosse um troféu, ainda sem abri-lo. -

Mínimos

NÃO VER PARA CRER - As fotos mostravam tudo. Ele ficou louco, procurando identificar erros de montagem.  SERÁ? - Pijamas, cadeira de balanço, leite morno. O sonho de todo aspirante a milionário.  CONVIVÊNCIA – A liga não ligava mais. Percebiam, mas fingiam não se importar. Velhos estranhos. A INDIFERENÇA - Jantavam ravióli e vinho. Engoliam em seco o silêncio.  SEPARAÇÃO - Assinaram o divórcio. A rotina virou saudade.  BLOQUEIO - João não conseguia cantar. Na sessão de terapia, chorou quando a psicóloga perguntou-lhe sobre a última vez que cantou. Só lembrava de uma voz que dizia: ‘cale-se’. Tinha cinco anos. TOMATES VERDES - Mãe, por que não podemos comer tomates verdes? - Pergunta besta! Porque são verdes, menino! - E por que são verdes? - Porque não estão maduros ainda. - Então eu posso brincar com eles, né?

Isadora, a intuitiva

Isadora acordou especialmente animada naquela manhã de segunda-feira. Antes mesmo de levantar da cama, inspecionou o celular para ver o horóscopo do dia. Leu as  previsões para Touro e impressionou-se com a última frase. Repetiu-a várias vezes enquanto se arrumava para ir ao aeroporto. Tinha voo dentro de três horas: - Sua necessidade de ação está em alta! Sua necessidade de ação está em alta! Sua necessidade de ação está em alta! Sua necessidade de ação está em alta! Aiiiiii! É  hoje! É hoje! Acho que ele vai estar lá no avião! Vai estar lá no avião!!!!! Vai sim!!! Isadora repetiu tanto isso que foi no táxi falando sozinha. Bem baixinho. Ela estava solteira havia três meses e desde então consultava horóscopo, leitura das mãos,  inscreveu-se em sites de previsões on-line. Tudo para saber se estava prestes a ganhar um novo amor. Ansiosa. A questão é que Isadora chegou ao aeroporto tarde demais. A porta do avião já havia fechado. Agitada, ela correu até o funcionário que operava a passar

A incômoda

O professor Marivaldo estava especialmente inspirado naquela tarde. Finalmente havia resolvido escrever o livro sobre a vida íntima dos pássaros. Largou mais cedo da faculdade e durante a caminhada de volta para casa passou pela confeitaria. Estava lotada. ‘Seria razoável tomar um café e rabiscar algumas ideias para o livro’, pensou ele. Entrou na confeitaria. Pediu um lugar o mais isolado possível, um canto de parede. Teve sorte. Esperou só dez minutos até que vagou uma mesa. Era conjugada com outra, de duas cadeiras, mas tudo bem.  Pediu um café e alguns pães de queijo. Pegou o bloquinho de anotações, posicionou os óculos de leitura e aguardou a inspiração. Eis que justo nesse momento uma mulher bastante elegante, óculos escuros na cabeça, de bolsa e sapatos amarelos aparece na sua frente com duas crianças, de uns sete, oito anos: - Olá, senhor! Tem alguém nessa mesa ao seu lado? - Não. - Obrigada! Rapidamente, a mulher sentou-se com as crianças e foi logo dando “a real” do que seria

A batalha dos sujeitos

O sujeito simples, o mais popular da galera, iniciou a chamada: - Sujeito composto? - Presente! - Sujeito oculto? Sujeito oculto? Cadê você? - Acho que ele saiu... - disse um. - Não, parece que foi ao banheiro - informou outro. - Não tem ninguém no banheiro. Vim de lá agora e não tem ninguém lá... - emendou mais um. - Então o sujeito oculto vai levar falta. - Estou aquiiiiii!!!!!! - Onde? - Como assim onde? Falei com vocês agorinha mesmo! - Falou? - Falei, sim! Tá vendo o que eu disse ontem? Nós não podemos ser originais porque senão ninguém nota, pelo menos no meu caso, que sou oculto! Preciso aparecer para ser percebido. - Deixa de drama, sujeito oculto – disse o sujeito simples - você pode sim ser percebido. E olhe que já ganhou outros nomes para identificá-lo: sujeito implícito, elíptico... - Parou! Parou! Parou! Se já é ruim do povo me notar, imagine com esses outros nomes. Isso só vale para estudante ou concurseiro, que estão afiados na gramática. Agora eu aqui, ó, escondidinho,

O mito de Perseu e os nossos medos

Conta a mitologia grega que o rei de Argos, Acrísio, conquistou a sua coroa através de uma disputa com o irmão gêmeo, Preto. Ambos disputavam, ainda no ventre da mãe, a primazia de sair primeiro para ficar com o poder. O pai dos gêmeos, então rei de Argos, Abas, determinou que os filhos deveriam se alternar no reino. No entanto, depois de sua morte, o que se viu foi uma guerra entre os irmãos, da qual Acrísio saiu vencedor e foi coroado. Quando se casou, Acrísio queria ter um filho homem, para sucedê-lo no trono. Mas nasceu uma filha, Danae. Frustrado, consultou o oráculo e ficou sabendo que não teria mais nenhum filho, mas o filho da sua filha iria ser o algoz da sua morte. Temendo essa previsão do oráculo e para evitar ser morto por um futuro neto, Acrísio resolveu encarcerar a filha Danae em uma câmara subterrânea junto com a ama. Mas, como o destino estava nas mãos dos deuses, Zeus, o deus maior da mitologia grega, entrou na câmara subterrânea em forma de chuva de ouro e fecundou D

Na confeitaria

O Café Colombo estava cheio naquela noite de sexta. Rubem, Suzana e a filha deles, Lili, esperaram uns trinta minutos para conseguir uma mesa. Ao se acomodarem e fazerem o pedido, Lili, quatro anos, já mostrou quem dominaria o jantar: - Papai, por que você e mamãe não se separam? Rubem ficou surpreso, mas, acostumado com as perguntas intempestivas da filha, sorriu levemente e respondeu: - Mas por que teríamos de nos separar? Está tudo bem, filhota! - Por que os pais dos meus colegas na classe são separados. Só os meus que não são. Suzana, que arrumava as coisas em uma cadeira, interessou-se em puxar a conversa: - Filhinha, e você gostaria que papai e mamãe se separassem? -... - É, Lili! Você gostaria? Diz pra gente. - Na verdade, não sei. Suzana puxou mais: -  Mas se a mamãe e papai fossem separados você seria feliz? - Humm... Pelo menos teria assunto pra conversar com meus colegas. - E o que seus colegas falam dos pais deles? – Rubem já estava interessando-se pela conversa. - Ah! Eles

O hífen e o casamento

Anselmo estava há um tempão naquela tempestade mental. Passava cerca de seis a oito horas por dia debruçado nos livros para passar em um concurso público. O problema todo dele não eram as matérias jurídicas para assimilar, mas, sim, o temido uso do hífen. Ele já não dominava bem esse tema tão nefasto para os concurseiros e, após o Novo Acordo Ortográfico, dominava menos ainda. Anselmo acendeu uma vela de sétimo dia, pediu para vários santos e chamou, mentalmente, o seu professor imaginário que sempre lhe dava aquela mãozinha: - Semi, intra, mega... ai, professor Nelson! Me ajuda! Como eles se juntam? Como eles se juntam? Vendo aquele desespero todo, o professor "aparece" como uma voz dentro da cabeça de Anselmo. - De novo com essa dúvida, meu filho? Mas você já fez tantos exercícios... - Fiz! Mas quando vem essa lista de palavras na minha frente parece que dá um branco, apaga tudo! Não sei em que terreno estou pisando. - Sabe o que acontece, filho? É que