Pular para o conteúdo principal

Ocorrência policial

Uma cena destoante naquela delegacia fétida e cheia de infiltrações nas paredes. Vera Lúcia estava lá, com aqueles sapatos scarpin, um conjunto de saia e blazer vermelho, maquiada, escovada, lavada e enxaguada de tão chique. O escrivão a recebeu como se fosse a primeira-dama. Pareciam velhos conhecidos:

- Sente-se, dona Vera, eu mesmo vou tomar o seu depoimento.
- Muita gentileza sua, senhor Adamastor.

E Adamastor, com toda a sua exímia experiência de tomador de depoimentos, resultado de trinta anos de profissão fazendo só aquilo, pôs-se a digitar o que era relatado pela ilustre depoente:

"Faz-se saber, por meio desta ocorrência, que aos 25 (vinte e cinco dias) do mês de fevereiro do corrente ano de 2012 (dois mil e doze) compareceu a esta delegacia a senhora Vera Lúcia Holanda Miranda Martins, brasileira, casada, residente e domiciliada na Rua Perfídia, número 34, bairro dos Algarves, Serra Gaúcha. A referida senhora, caracterizada neste documento como depoente, saía do salão de cabeleireiro no bairro de Tormenta, vizinho ao bairro onde reside, por volta das oito da noite do dia 20 (vinte) de fevereiro do corrente ano. Contou a depoente que ao dirigir-se ao seu veículo, um March preto, placa KJF-3433, e antes mesmo de acionar o alarme do veículo, foi abordada por um homem alto, que trajava paletó e gravata, calça social, e solicitou-lhe a informação das horas. Ocorreu que, antes mesmo de a depoente olhar o relógio para prestar a informação solicitada, o indivíduo, ainda não identificado, anunciou um assalto. A depoente conta que foi levada pelo indivíduo a um lugar desconhecido, uma vez que teve os olhos vendados, e, ao chegar nesse lugar, foi colocada em uma espécie de quarto, com cama redonda e espelhos no teto. O indivíduo ameaçou a depoente de que se ela não revelasse as senhas dos cartões de banco ele iria tirar fotos dos dois e mostrar ao marido dela. A depoente, assustada e temendo muito pela sua vida, entregou as senhas dos cartões. O indivíduo ainda a reteve no quarto por cinco horas, tirou fotos e só a liberou por volta da uma hora da manhã. Mesmo assim, não satisfeito em roubar os cartões da vítima, o meliante enviou as fotos comprometedoras ao marido da depoente, que, por sua vez, ficou furioso. Nada mais a acrescentar no momento, encerro este depoimento conferindo a total veracidade dos fatos aqui relatados."


- Pronto, dona, acho que isso aqui acalma a fera!

- Obrigada, senhor Adamastor!


Vera Lúcia pegou a ocorrência e salvou o seu casamento. A confiança é a base de tudo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Duelo com Satã

Quando a areia repousa no fundo do lago, cria-se a falsa sensação de que as coisas estão em paz. Nos seus devidos lugares. A questão é que a areia e a água do lago não são permanentes. A areia precisa de algo, de uma força que lhe é externa, ainda que dentro do lago, para lhe tirar do lugar. O lago, a seu turno, acomoda ou incomoda um ecossistema que lhe é natural, mas não é permanente. Sofre as ameaças dentro da sua concha e fora ela. O que importa, em um final que nunca termina, é que nada fica do mesmo jeito que sempre foi, ou que sempre é. O que vai em nossa alma também é assim. O documentário "Alma imoral", baseado no livro de Nilton Bonder, trata sobre essa impermanência. Essa oscilação que se move graças a tudo que transgride as regras. Ou tudo que transcende-as. Dá no mesmo, no final. Transgredir é transcender. A segunda pode parecer mais "católica", sim, é. Arrematada pela filosofia medieval, que se apropriou do Homem e de Deus. Em ambos os caminhos, revo...

No ritmo do mar

Os pensamentos guardam em si a mesma intermitência das ondas do mar. Ora voltam à calmaria, ora revoltam-se contra as pedras, ora nos quebram só para começarmos tudo de novo... E ainda bem que o mar é assim.

O riso

O riso é, sim, uma manifestação de alguém que está feliz. Mas é também desespero de alguém em aflição. Porque o riso tem essa característica de ser, em si, oposição. O riso é ainda um recurso de quem é pego de surpresa e, sem saber o que dizer, ri. Ri o riso dos fujões ou dos traídos pela falta de reação ao assalto de um argumento. O riso é, sim, autoritário. Impõe com uma cara engraçada uma inocente piada, que de nada disso tem. Tem pavor, rancor, preconceito. Mas o riso tudo abafa. E aparece, ali, sorrateiro e inconveniente.  Senhor de sua presença. O riso é, sim, falta de assunto. Provocação e até irritação. Testa os nervos de quem vê em tudo um opositor. Testa também os nervos daquele professor. Que suporta, ou não, os risinhos quando tira os olhos do grupo. O riso, em suas variantes e sob todas as suas relatividades, é imprevisível. É um enigma. Porque nem todo riso é sincero. E quando falta a verdade, sobra aut...