Pular para o conteúdo principal

Inquietações de uma dondoca





Crianças não perdoam quando fazem perguntas. Mesmo sem querer, deixam sem palavras aqueles que são alvos de suas indagações. A dona “Branca não sei das quantas” – cujos sobrenomes são tão compridos que tomariam muito espaço citar nesta coluna – foi uma vítima das perguntas cravadas do seu filho, Gabriel, seis anos de idade:
- Mamãe, o que é uma dondoca?
- Branca tomou um choque. Parou imediatamente de assistir à reprise do casamento real e tentou ganhar tempo com outra pergunta:
- Mas por que você está me perguntando isso, filho?
- Por que lá no colégio disseram que a senhora é uma dondoca.
- O quê? Mas isso é bullying!! Que absurdo! Vou falar com a diretora e...
- E o que é isso de bulli.. o quê mesmo?
- Deixa pra lá filho, depois eu te explico.
- Mas e então, mamãe?
- Então o quê, Gabriel?
- A senhora e ou não é uma dondoca?
Agora Branca não tinha mais saída. Além de ter que achar uma resposta para si mesma, teria que satisfazer, pelo menos momentaneamente, à curiosidade do filho. Tentou enrolar:
- Olha, filho, dondoca é aquela mulher que, graças a Deus, tem um marido que pode sustenta-la e ela, dessa forma, pode cuidar bem da sua família, da sua casa, dos filhos. Você, mesmo, não gosta de passear com a mamãe no shopping quase todo dia?
- Gosto.
- Então, isso é uma dondoca. Mas o problema é que as pessoas julgam as dondocas. Acham que nós somos um bando de desocupadas. No entanto, nós não somos. Somos pessoas legais, de bom coração e muito antenadas com o que está acontecendo. Você não vê a mamãe lendo o jornal todos os dias?
- Vejo!
-Então! Quando algum coleguinha lhe perguntar isso novamente, diga que eu sou a melhor mãe do mundo.
- Tá!
Branca respirou aliviada. Pelo menos tinha satisfeito à curiosidade do filho. Mas ficou ela com suas inquietações. Pela primeira vez, sentiu-se incomodada de ter sido rotulada de dondoca. Estava sendo vítima dos estereótipos que a sociedade impõe aos indivíduos que dela fazem parte. Incrível como uma palavra pode trazer uma carga tão pesada. Resolveu se aliviar indo ao dicionário. ‘Pelo menos aqui vou encontrar uma definição imparcial’, pensou ela.
Pegou o tablet e leu o que tinha no Houaiss sobre a definição de ‘dondoca’: “Mulher bem situada socialmente, que não precisa fazer esforço na vida e cujas preocupações primam pela futilidade”.
- Raios! Nem os dicionários estão a salvo do preconceito! – Esbravejou consigo mesma e foi às ruas protestar.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Duelo com Satã

Quando a areia repousa no fundo do lago, cria-se a falsa sensação de que as coisas estão em paz. Nos seus devidos lugares. A questão é que a areia e a água do lago não são permanentes. A areia precisa de algo, de uma força que lhe é externa, ainda que dentro do lago, para lhe tirar do lugar. O lago, a seu turno, acomoda ou incomoda um ecossistema que lhe é natural, mas não é permanente. Sofre as ameaças dentro da sua concha e fora ela. O que importa, em um final que nunca termina, é que nada fica do mesmo jeito que sempre foi, ou que sempre é. O que vai em nossa alma também é assim. O documentário "Alma imoral", baseado no livro de Nilton Bonder, trata sobre essa impermanência. Essa oscilação que se move graças a tudo que transgride as regras. Ou tudo que transcende-as. Dá no mesmo, no final. Transgredir é transcender. A segunda pode parecer mais "católica", sim, é. Arrematada pela filosofia medieval, que se apropriou do Homem e de Deus. Em ambos os caminhos, revo...

No ritmo do mar

Os pensamentos guardam em si a mesma intermitência das ondas do mar. Ora voltam à calmaria, ora revoltam-se contra as pedras, ora nos quebram só para começarmos tudo de novo... E ainda bem que o mar é assim.

O riso

O riso é, sim, uma manifestação de alguém que está feliz. Mas é também desespero de alguém em aflição. Porque o riso tem essa característica de ser, em si, oposição. O riso é ainda um recurso de quem é pego de surpresa e, sem saber o que dizer, ri. Ri o riso dos fujões ou dos traídos pela falta de reação ao assalto de um argumento. O riso é, sim, autoritário. Impõe com uma cara engraçada uma inocente piada, que de nada disso tem. Tem pavor, rancor, preconceito. Mas o riso tudo abafa. E aparece, ali, sorrateiro e inconveniente.  Senhor de sua presença. O riso é, sim, falta de assunto. Provocação e até irritação. Testa os nervos de quem vê em tudo um opositor. Testa também os nervos daquele professor. Que suporta, ou não, os risinhos quando tira os olhos do grupo. O riso, em suas variantes e sob todas as suas relatividades, é imprevisível. É um enigma. Porque nem todo riso é sincero. E quando falta a verdade, sobra aut...