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Raimundo

Atrás de óculos e de um bigode, qualquer um esconde os mais recônditos segredos. Rosto sisudo, expressão séria, maxilares travados e tensionados. Assim é Raimundo, que não rima com nada, apenas com ele mesmo. Raimundo é aquele estranho que chama atenção só pela aparência: estranha. Certa vez estava ele no açougue, seriamente, pedindo dois quilos de bisteca:

- Dois quilos de bisteca, por obséquio
- Por o quê? – Perguntou o açougueiro.
- Obséquio.

O açougueiro deu um risinho e falou para o cara do despacho:
- Corta bisteca aê!!! Dois quilos!

Raimundo irritou-se com aquilo. Para ele, um tratamento mais ríspido conversa com a má educação. Mas não ia se trocar no açougue. Preferiu engolir o aborrecimento e dar seguimento à rotina. Pegou a carne e foi para o caixa. Lá, outra bofetada:
- Só tá passando se for em dinheiro – Disse a caixa, com cara de poucos amigos.
- Mas eu tenho dinheiro aqui. Ia pagar em dinheiro mesmo, senhorita.

E a moça do caixa disparou outra:
- Só tô avisando para não ter problema e reclamar depois.

Ao sair do açougue, quando ia abrir a porta do carro, um flanelinha adiantou-se:
- Aê, tio!
- Tem dinheiro não! – Gritou Raimundo.


Ninguém é de ferro.

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