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O hífen e o casamento

Anselmo estava há um tempão naquela tempestade mental. Passava cerca de seis a oito horas por dia debruçado nos livros para passar em um concurso público. O problema todo dele não eram as matérias jurídicas para assimilar, mas, sim, o temido uso do hífen. Ele já não dominava bem esse tema tão nefasto para os concurseiros e, após o Novo Acordo Ortográfico, dominava menos ainda. Anselmo acendeu uma vela de sétimo dia, pediu para vários santos e chamou, mentalmente, o seu professor imaginário que sempre lhe dava aquela mãozinha:
- Semi, intra, mega... ai, professor Nelson! Me ajuda! Como eles se juntam? Como eles se juntam?
Vendo aquele desespero todo, o professor "aparece" como uma voz dentro da cabeça de Anselmo.
- De novo com essa dúvida, meu filho? Mas você já fez tantos exercícios...
- Fiz! Mas quando vem essa lista de palavras na minha frente parece que dá um branco, apaga tudo! Não sei em que terreno estou pisando.
- Sabe o que acontece, filho? É que você não casou ainda.
- Como?
- Isso mesmo. O seu problema é a falta do casamento. Você precisa se casar para compreender o uso do hífen.
Anselmo achou que tinha tomado já muito café e estava interferindo nas "comunicações" do professor imaginário.
- Puxa vida! Nem com o professor posso contar mais. Estou encalacrado!
- Está não, meu filho! O seu problema é a falta de casamento, pode crer!
- Não é, professor! Isso é meu inconsciente querendo dominar o ego. Não é o senhor que está me dizendo isso! Infelizmente! Ai, eu só queria uma luz!
- Pois vou provar que não é o seu inconsciente. Olha, a questão do hífen, meu filho, é um casamento. Se há compatibilidade, se juntam. Se não há, se separam.
- E daí?
- Só que a compatibilidade não quer dizer que as pessoas pensem do mesmo jeito. Elas devem manter a individualidade para ter uma relação saudável com o outro...
- Extra-conjugal, extraoficial, semi-inconsciência ou semiinconsciência... - Tentava Anselmo, sem sucesso, responder às questões.
- Não adianta me ignorar, meu filho! Eis que vou lhe revelar esse segredinho do casamento. Aliás, não é tão segredinho assim, mas geralmente as pessoas se esquecem dele e por isso tudo vai por água abaixo.
- Duvido que esse segredo vá me salvar! Vamos ver se é você mesmo, professor, ou é uma autosabotagem minha. Ou seria auto-sabotagem?
- O hífen é como o casamento - disse o professor, continuando:
- Diga-me, meu caro, o que diz a primeira regra, sobre os prefixos?
Anselmo não acreditava que ia fazer aquilo, mas valia tudo para dominar o tema, ou ia enlouquecer de vez. Então, falou, sozinho, e em voz alta:
- Diz que ocorre o hífen quando o segundo elemento começa com H ou quando o esse segundo elemento começa com a mesma vogal que o prefixo termina. O que isso tem a ver com o casamento?
- Muito claro, meu filho! Quando há uma igualdade muito grande entre os parceiros em um casamento, é necessário que haja alguma diferença entre eles, uma ponte, um hífen!
- Mas e o H?
- O H é mais ou menos uma zona comum aos dois, que funciona como se fosse um som neutro. Basta pensar assim.
Anselmo começou a raciocinar a outra regra, agora, sem pudores, falando, sozinho, em voz alta:
- Então quando em um casamento os parceiros são diferentes, vale a regra dos opostos se atraem? Sendo assim, o prefixo que termina em vogal junta sem hífen ao elemento seguinte caso ele comece por uma vogal diferente!
- Isso mesmo, meu filho! Você pegou o espírito da coisa!
- Espírito...
- Entre o casal com temperamentos semelhantes tem de haver um hifenzinho para apimentar a relação. Já para casais com temperamentos diferentes, esse hífen desaparece porque os opostos se atraem!
- Obrigado, professor!
Depois daquela catarse, Anselmo respondeu às questões sem pestanejar:
- Extraconjugal, extraoficial, semi-inconsciência...
Após o estudo, deu uma busca no Google:
"Sites de relacionamento"
- Calma, meu filho! Você ainda precisa estudar as outras ocorrências de hífen! - Reapareceu o professor.
- Mas a minha consciência diz que devo dar uma paradinha agora...

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